• Museu Digital resguarda arte, memória e história da UNILA

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22/08/2025 by 

Coleção reúne registros de grafites, murais e pixações como forma de preservação; mural “Ninguém Regula a América”, que será coberto em reforma no JU, integrará exposição virtual

Um “tio Sam” com feições ameaçadoras; uma figura humana que tenta pular uma cerca; um campo de exploração de petróleo; um helicóptero de guerra. Ao centro, esqueletos humanos, como personificação da morte, disputam um jogo em que, no tabuleiro, há elementos de dominação ao lado de signos que representam a região trinacional e o Aquífero Guarani. No lado direito dessa cena central, uma wiphala, bandeira que representa a identidade e a cosmovisão dos povos andinos. No lado esquerdo, a bandeira da UNILA.

Para a comunidade unileira, a descrição é bastante familiar: trata-se da obra “Ninguém regula a América”, de Rodrigo Queiroga, que desde 2018 estampa a parede ao lado da rampa que liga a recepção da unidade Jardim Universitário aos andares superiores. Repleto de simbolismos, o grafite será incorporado ao Museu Digital UNILA (MUD), ao lado de outras produções, dentro da Coleção Arte Pública da UNILA, que reúne registros de intervenções artísticas executadas ao longo dos anos nos espaços da Universidade. Sete anos após a sua concepção, a obra deixará de existir fisicamente, pois será coberta por camadas de tinta dentro de um processo de readequação da recepção do campus. A intervenção na infraestrutura segue o estabelecimento de critérios e fluxos para uso artístico-cultural das paredes e espaços físicos da UNILA – concretizado por meio de uma Instrução Normativa editada no início deste mês – e a requalificação dos espaços da Universidade.

 Artivismo

 Definida pelo próprio Rodrigo Queiroga como uma obra típica do “artivismo” – neologismo que une as palavras arte e a ativismo – “Ninguém regula a América”, segundo ele, foi criada enquanto cursava uma disciplina em Relações Internacionais, e é um convite à reflexão sobre o conceito do imperialismo: “é para a gente entender esses elementos, tanto de resistência, quanto de opressão. Entender de onde vêm”, explica. “É uma arte para questionar nossa realidade, questionar o entendimento dessa realidade. Isso, para mim, é um dos papéis que a arte desempenha”, complementa.

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Mural Ninguém regula a América será coberto, mas poderá ser contemplado no MUD

A extinção do mural, própria do processo de mudança inerente às instituições, que necessitam regularmente de manutenção e adequação dos espaços, é vista com naturalidade pelo próprio autor, que observa nesse fato uma forma de possibilitar novas intervenções nos espaços, que poderão ser executadas por outros artistas, e que levem a novas reflexões, assim como “Ninguém regula a América” propiciou durante estes anos. “A arte, para mim, é efêmera. Ainda mais um tipo de arte como o muralismo, o grafite, a pixação [arte transgressora, executada por artistas individualmente ou em grupo, que se difere das pichações, manifestações populares, sem fins artísticos ou contemplativos]. As novas gerações estão aí; novos temas para serem abordados. A disputa do espaço público faz parte também de todo esse processo”, comenta, em uma entrevista que acompanhará a exposição do mural no MUD e que pode ser assistida abaixo.

 Dizendo-se grato por tudo o que viveu na UNILA – onde se graduou em Filosofia e tornou-se mestre em História, justamente com uma pesquisa sobre o “artivismo” – o artista atribui esse sentimento às oportunidades vivenciadas neste período, tanto por meio das disciplinas, pelo convívio, quanto pela forma como seu trabalho foi tratado. “Estou muito grato também com esse cuidado no tratamento desse mural, do apagamento e da substituição dele por outra coisa, um outro mural, o que for necessário. É isso, gratidão, sentimento de gratidão total”, revelou.

Autor, entre outros, do mural “Marielle Franco Presente” – também exposto na recepção do JU – Queiroga é parceiro do MUD desde 2021, quando o museu incorporou ao seu acervo o projeto “Muralismo na ocupação BUBAS: Histórias de vida e território”. “Desde então, o MUD se tornou um aliado na preservação e difusão da minha produção artística na UNILA”, conta. Dentre suas obras expostas no museu, está o próprio “Marielle Franco Presente” e “Mata Pacos” – inspirado no símbolo político chileno El Negro Matapacos, cão que participava de manifestações. 

MUD

Ao integrar a Coleção Arte Pública da UNILA, o mural “Ninguém Regula a América” estará também ao lado de obras de outros artistas e coletivos. São intervenções que fazem parte da história da Universidade e que, por meio dos registros fotográficos, são salvaguardadas. “A coleção foi concebida para salvaguardar um conjunto de murais, grafites e pixações que estampam as paredes da Universidade, e que contam um pouco de nossa história por meio das vozes de artistas e coletivos que vivenciam o cotidiano da UNILA”, resume uma das coordenadoras-gerais do MUD, Ana Rita Uhle. 

Conforme a coordenadora, murais, grafites, pixações e outros são expressões artísticas, poéticas e políticas que traduzem uma prática cultural consolidada e amplamente presente nas universidades públicas brasileiras. Essas manifestações, afirma, assim como como a arte de Queiroga, têm “caráter efêmero”. Por isso, estão “sujeitas ao desgaste do tempo, às reformas, à sobreposição por novas intervenções, ou seja, às interações próprias do espaço público”, complementa.

recepção

Entrada do JU passará por readequação (Foto: Moisés Bonfim)

Especificamente em relação ao mural “Ninguém regula a América”, Ana Rita lembra que o artista/artivista que a criou possui uma trajetória marcante e produziu “obras significativas ao longo de sua formação”. Segundo ela, os fatos que levaram à concepção da obra, assim como a trajetória do próprio artivista, “poderão ser conhecidos em maior detalhe na Coleção de Arte Pública do MUD, que terá caráter aberto e permanente, permitindo sua ampliação contínua com a inclusão de novos registros de intervenções realizadas nas paredes da Universidade”.

Requalificação dos espaços

A cobertura do mural “Ninguém regula a América – e sua consequente exposição permanente no MUD – deve-se a duas ações adotadas pela UNILA que, embora distintas, podem ser complementares: o estabelecimento de critérios e fluxos para uso artístico-cultural das paredes e espaços físicos da UNILA e a requalificação dos espaços. A primeira delas segue a Instrução Normativa nº 3, editada em 5 de agosto. Publicado pela Pró-Reitoria de Extensão e pela Prefeitura Universitária, o dispositivo segue leis federais, um decreto presidencial, a lei municipal que dispõe sobre a obrigatoriedade de obras de arte em edificações no município de Foz do Iguaçu e a Resolução CONSUN nº 22, que institui a Política de Culturas da UNILA.

Segundo Andreia Moassab, pró-reitora de Extensão, a IN nasceu a partir da observação de que, mesmo com as diversas intervenções artístico- culturais já existentes, sobretudo nas paredes do Jardim Universitário, têm sido cada vez mais intensas e mais frequentes as solicitações de execução de novas obras. Solicitações que, em sua avaliação, coadunam com a pluralidade e as dinâmicas características da Universidade. “Mas a gente sentia a falta de regulamentar: o que seriam essas manifestações?; que paredes poderiam ser utilizadas?; qual a responsabilidade de quem faz a arte?; até onde vai a responsabilidade da UNILA?”, explica. A esses questionamentos, somam-se ainda aspectos como a segurança na execução, como o uso de equipamentos de proteção individual, por exemplo. Além disso, há a demanda da própria PROEX e dos institutos, que requerem espaços para manifestações artísticas ou para outros fins.  “Por conta disso, num debate entre a SECOM, a Prefeitura Universitária e a PROEX, elaboramos a IN que acabou sendo assinada pela PROEX em conjunto com a Prefeitura Universitária”.

projeto

Projeto prevê nova identidade visual, área de estar e painéis eletrônicos

Além dessas unidades, contribuíram nas discussões a Reitoria e alguns dos professores ligados à área artística. “A IN define qual é a responsabilidade de cada setor e a questão da qualidade estético-artística da obra será definida por uma comissão específica”, complementa. Denominada Curadoria de Patrimônio Artístico de Longa Duração da UNILA, a comissão foi instituída por meio da Portaria nº 17, publicada em 5 agosto, e é composta por  D’Miguel representante do Departamento de Cultura da PROEX; Ana Rita Uhle, representante do Museu Digital da UNILA; Rosangela de Jesus Silva representante docente; Michele Dacas representante TAE, e Bemto representante discente.

Conforme Andreia Moassab, a IN estabelece critérios de intervenção artístico-cultural de longa duração uma vez que “os espaços são vivos”. “Na medida em que pode haver a necessidade de ser substituído, a curadoria deve se manifestar. Às vezes, num determinado contexto, a obra faz sentido, dependendo do ambiente cultural daquele momento, da agenda. E, de repente, ficou no passado e há a necessidade de se reutilizar aquele espaço a partir de outras temáticas”, pondera.